Um bispo pouco convencional no Portugal joanino:
José António Falcão apresentou em Ourique a biografia de D. António Paes Godinho, bispo de Nanquim, que difundiu a laranja-da-china e trouxe os chineses para o Alentejo
Parecer e Ser: Excursus Vital de D. António Paes Godinho, Bispo de Nanquim é a novíssima obra do historiador José António Falcão, profundo trabalho de investigação que traz para a ribalta uma das mais influentes personalidades do Portugal do tempo de D. João V. Recusando o aparato mundano dos prelados da sua época, este bispo faz parte do nosso imaginário colectivo e influenciou também as relações com a China, entre muitos outros traços que contribuíram para lhe perpetuar a memória entre os contemporâneos.
José António Falcão confessa que desde há muito a misteriosa figura de D. António Paes Godinho o intrigava, «um bispo de Nanquim que as circunstâncias da política internacional do tempo do imperador Kangxi impediram de chegar à China, mas que trouxe o Extremo-Oriente até ao Alentejo». Sublinha que se trata «de uma personalidade quase mítica da história de terras como Santiago do Cacém, Viana do Alentejo ou Mafra, para não falar da aldeia onde nasceu, Santa Luzia, hoje no concelho de Ourique; no entanto, a sua existência foi bem palpável e deixou fortes marcas.» Grande parte dessa aura «deve-se ao facto de ter sido membro destacado de um movimento espiritual radical, profundamente reformador, a Jacobeia, que assumiu as rédeas do poder no tempo de D. João V e foi depois objecto de perseguição por parte do Marquês de Pombal.» E acrescenta: «D. António Paes Godinho manteve, afinal, mesmo nas mais altas instâncias, a sua maneira de ser como alentejano de lei».
Na atmosfera de luzes e sombras da corte joanina, Paes Godinho foi alguém que se manteve à margem dos jogos políticos e conquistou a estima do rei, mas, como realça o autor, «nunca quis outra coisa senão poder estar, em recato, nesse Alentejo onde estavam as suas raízes.»
Quanto a esta região, a memória do bispo de Nanquim está sobretudo associada à introdução da laranja-da-china e de outras espécies exóticas, que a tradição diz ter mandado vir da China continental, através de Macau, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da hortifruticultura e do paisagismo entre nós. É célebre o jardim que fez plantar na sua quinta dos Olhos Bolidos, em Santiago do Cacém.
Por outro lado, afirma também a tradição que, nunca tendo podido chegar a Nanquim – esteve quatro vezes a ponto de embarcar, mas jamais chegou a autorização para partir –, fez vir das distantes paragens chinesas algumas dezenas de seminaristas, que concluíram os estudos eclesiásticos no seu paço.
O livro, com chancela da ORIK, foi apresentado pelo professor Vítor Encarnação.
A propósito do lançamento desta obra, Henrique Albino Figueira, presidente da ORIK – Associação de Defesa do Património de Ourique, congratulou-se pela oportunidade de poder «editar a biografia de D. António Paes Godinho, percorrendo o caminho que nos propusemos trilhar: divulgar a história local do concelho de Ourique.» Com um conjunto alargado de apoios institucionais – onde sobressai o Alto Patrocínio do Presidente da República – e empresariais, a obra, refere o editor, “traz para a luz do dia uma personalidade que nasceu na antiga freguesia de Santa Luzia, foi designado bispo de uma remota região da China, em 1716, e teve papel central na corte do rei D. João V e na sagração da basílica de Mafra.”
Resumo da Obra
No ambiente de claridades e sombras da vida religiosa do Portugal joanino, objecto de ramificações políticas e sociais, brilha D. António Paes Godinho, 3.º bispo de Nanquim, figura com um percurso singular, marcado pelo empenho apostólico, desapego da autoridade, inclinação contemplativa e fidelidade às origens. Transparecem nisto traços da espiritualidade coeva, tocada pela complexa trama das relações entre a Igreja e o poder. Não faltam reflexos de uma idiossincrasia própria da realidade alentejana.
Filho de lavradores, nasceu em Santa Luzia, freguesia do antigo concelho de Garvão, em 1668. Licenciado e mestre pela Universidade de Évora, continuou os estudos, já presbítero, na de Coimbra. Interrompeu-os para serviço da Arquidiocese de Évora, como cura em Alvito e, depois, como confessor e vigário do mosteiro de Jesus, em Viana do Alentejo. Em 1716, foi escolhido para a Diocese de Nanquim onde não exerceu. O difícil relacionamento entre a China e a Santa Sé, com Portugal e França de permeio, na sequência da Querela do Ritos, não o consentiu. Em 1720, renunciou ao bispado. Tornou ao Alentejo onde se fez provisor da Arquidiocese de Lisboa Oriental. Aí integrou o Conselho do Rei. Em 1730 sagrou a basílica de Mafra.
Livre de tarefas áulicas, a seu pedido, teve no Alentejo, de novo, o lugar predilecto. Em Santiago do Cacém, na quinta de Olhos Bolidos, estabeleceu um jardim, recheado de espécies exóticas e com uma casa de fresco, a «chinesa». Nunca podendo alcançar o Oriente – devido à controvérsia causada pela célebre Querela dos Ritos –, fê-lo vir às terras de Cacém onde acolheu seminaristas chineses e fomentou a introdução da «laranja-da-china». Passou os últimos anos nas suas «casas nobres» de Viana, a localidade, de todas aquelas em que viveu, que mais estimou. Aqui faleceu, em 1752, com fama de santidade, não sem ter tido que enfrentar a sanha persecutória da Inquisição, devido ao seu perfil espiritual e humanista, pouco afim às práticas do alto clero da época.
Sobre o Autor
Historiador de arte, museólogo e professor universitário, José António Falcão nasceu em Lisboa, em 1961. Especialista no âmbito da arte e da arquitectura religiosas, tem consagrado a sua actividade ao estudo e salvaguarda dos bens culturais do Alentejo, granjeando prémios portugueses e europeus. Dirigiu o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja desde a fundação (1984) à extinção (2017) deste serviço, distinguido pela UNESCO como “exemplo do resgate cultural de um território”. Foi responsável pela criação, em 2006, da Rede Museológica daquela diocese, formada por oito museus.
Exerceu funções, entre outras instituições, no Museo Nacional de Cerámica y Artes Suntuarias (Valência), no Museu Municipal de Santiago do Cacém, no Museu de Évora, no Museu Calouste Gulbenkian e no Museu da Academia das Ciências de Lisboa. Conservador e mais tarde director da Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça, contribuiu para o seu relançamento em fases críticas. Foi presidente do Opart, empresa pública no âmbito da Cultura, e leccionou História da Arte e Museologia em universidades de Portugal, Espanha, Brasil e Estados Unidos da América.
Pertence à Academia Nacional de Belas-Artes, à Academia Portuguesa da História e a instituições similares de vários países. Fundou, em 2003, o Festival Terras sem Sombra, iniciativa da sociedade civil que surgiu com o propósito de apresentar uma temporada musical, mas também patrimonial e biodiversa, no Alentejo e em zonas vizinhas de Espanha. Em 2016, impulsionou a formação do Centro UNESCO de Arquitectura e Arte. Tem representado Portugal no PRERICO – Committee for Places of Religion and Ritual, do ICOMOS, e noutros organismos internacionais.
Da ampla bibliografia de José António Falcão destacam-se as seguintes obras: Entre o Céu e a Terra: Arte Sacra da Diocese de Beja, As Formas do Espírito: Arte Sacra da Diocese de Beja, O Jardim das Hespérides: Pintura Espanhola dos Séculos XIX e XX na Casa dos Patudos, No Caminho sob as Estrelas: Santiago e a Peregrinação a Compostela, Face a Face: Representações do Sagrado na Arte Europeia e Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado.
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